Prefacio
Em 2020, a SEGIB e a União Europeia lançam o projeto denominado “Uma cooperação triangular inovadora para uma nova Agenda de Desenvolvimento” que busca contribuir à construção de um modelo inovador de Cooperação Triangular (CT) UE-ALC alinhado com a Agenda 2030 e sob o marco de uma concepção multidimensional, integral e dinâmica dos processos de desenvolvimento, assim como gerar ferramentas inovadoras para uma melhor gestão da cooperação em geral e dos projetos de CT em particular, com o convencimento de que o trabalho em ambas as direções permitirá avançar para uma CT mais eficiente como meio de implementação da Agenda 2030.
Como parte de tal projeto, se elabora uma série de estudos que abordam diversas facetas desta modalidade de cooperação: a CT e sua vinculação com as cidades e a cooperação descentralizada, a CT no marco da Agenda 2030, a CT e as populações indígenas e vulneráveis. Siga este estudo sobre o potencial estratégico da CT, visto desde os doadores da UE, entendida aqui como a soma da Comissão Europeia e de uma dezena de Estados Membro (EM). Os principais resultados e conclusões deste conjunto de trabalhos são resumidos na publicação sobre uma CT inovadora para uma nova agenda de desenvolvimento.
O estudo que aqui é apresentado, elaborado entre os meses de fevereiro e julho de 2022, é, pois, um insumo a mais para uma reflexão mais ampla sobre o potencial da CT, financiado no marco do acordo entre a UE e a SEGIB.
Resumo
A cooperação triangular (CT) surgiu já faz décadas a raiz da cooperação Sul-Sul (CSS), como modalidade de cooperação articulada através de, ao menos, três atores com papéis diferenciados: doador tradicional ou segundo oferente, doador emergente ou primeiro oferente e beneficiário. Ainda que a CT da União Europeia (UE) e seus Estados Membro (EM) é ainda limitada e os dados em ocasiões incompletos, destacam as mais de cem experiências triangulares de Alemanha e da Espanha. Além disso, a CE lançou em 2015 seu primeiro programa explicitamente dedicado à CT com a ALC, Adelante, seguido mais recentemente de Adelante II. Pelo mais, a reduzida CT do resto de EM se encontra repartida entre América Latina e o Caribe (ALC) e a África, com um forte foco setorial nos temas de governança e sociedade civil.
Neste policy paper são revisados os trabalhos prévios sobre CT e são realizadas umas vinte entrevistas a pessoas com responsabilidades em CT de dez EM, além da Comissão Europeia, para explorar o valor estratégico da CT, entendido aqui como a capacidade – real ou potencial – da CT para contribuir aos objetivos políticos dos países da UE. Seguindo as opiniões expressadas pelos entrevistados, o potencial estratégico da CT seria maior que do que se aproveita, apesar dos desafios desta modalidade de cooperação e dadas suas fortalezas. São extraídas pois, uma série de recomendações dirigidas a (i) avançar na definição e medição da CT, (ii) elevar seu perfil político -extraindo-a do nicho técnico no que se localiza- e (iii) aumentar seu impacto em desenvolvimento.
Introdução
Alguns dos fatores que fazem da Cooperação Triangular (CT) uma modalidade de ajuda crescentemente relevante são o incremento e a diversificação dos polos de influência mundiais, a denominada “graduação” de um grupo importante de países em desenvolvimento, a evolução da AOD de uma mera transferência de recursos para uma ferramenta de diálogo político, ou as debilidades da cooperação tradicional que, a crise como a da Covid-19 põem de manifesto (Alonso et al., 2011; Ashoff, 2010; Langendorf, 2012; Piefer, 2014; UNOSSC, 2021a).
A CT foi concebida já faz décadas. Suas origens e os princípios pelos quais se rege emanam da Cooperação Sul-Sul (CSS), cujos inícios se situam, por sua vez, nos anos sessenta (com o Movimento de Países não Alinhados, a criação da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) e a constituição do G77). De fato, alguns países, como a Alemanha e o Japão, já acumulam bastante experiência em projetos de CT. No entanto, com as crises energéticas dos anos 70 e a crise de dívida dos 80, tanto a CSS como sua variante triangular perderam protagonismo no diálogo sobre desenvolvimento global e força em sua prática. Seu ressurgimento recente, impulsionado pelos fatores mencionados anteriormente e por um, cada vez maior, reconhecimento das vantagens comparadas da CT, foi acompanhado de extensos debates acerca de seu impacto e eficácia e a probabilidade de que se consolide como modalidade de cooperação relevante nas próximas décadas.
Tais debates se alimentam de uma série de desafios da CT, como a falta de informação, as dúvidas sobre sua eficácia ou de sua capacidade transformadora e elevados custos de transação. O valor estratégico final que a CT possa ter dependerá da correta identificação de suas vantagens, da medida na qual a CT sirva aos objetivos estratégicos dos atores envolvidos e de se as vantagens que forem obtidas através desta modalidade de cooperação compensam os obstáculos que estes desafios representam.
Em anos recentes, a União Europeia (UE – constituída pelas instituições europeias e os 27 Estados Membro (EM)) começou a formular ou fortalecer sua CT, a maior parte da qual se realiza com sócios da América Latina e o Caribe (ALC). Esta forma de cooperar com a ALC dota à UE e seus EM a oportunidade de perpetuar relações de confiança e trabalho conjunto que foram se forjando com sócios da região, ao longo dos anos, (em grande parte mediante a cooperação ao desenvolvimento tradicional), e de aproveitar agora essas alianças para dar solução aos desafios de desenvolvimento global. Ainda assim, a CT com o conjunto do Sul Global e, em concreto, com esta região, continuam representando uma carteira de projetos muito pequena quando se compara com o resto da cooperação ao desenvolvimento da UE.
O objetivo deste estudo é, precisamente, identificar o valor ou importância estratégica da CT com a ALC para os países da UE; isto é, a capacidade potencial ou real da CT para coadjuvar ao cumprimento dos objetivos políticos que os atores envolvidos tenham programado para si, tanto no âmbito da cooperação ao desenvolvimento, como fora dele. É com esta definição do que constitui o valor estratégico – ao qual também nos referiremos como importância ou relevância estratégica ou política, potencial estratégico ou valor agregado político – com a qual se trabalhará ao longo desta análise.
A falta de informação sistematizada e comparável sobre CT gera um vazio importante no momento de perfilar seu valor agregado. Até agora, os distintas tentativas de preencher este vazio centraram-se, fundamentalmente, em extrair lições dos projetos de CT implementados para determinar seu impacto em desenvolvimento, eficácia e boas práticas. Não obstante, por um lado, se desconhece quão generalizáveis são as conclusões extraídas dos casos que analisados. Por outro lado, ainda que os benefícios da CT, em matéria de forja de alianças, é mencionado amiúde na literatura, a maneira específica na qual a CT pode contribuir aos objetivos estratégicos dos distintos sócios, particularmente os doadores tradicionais, não está explorada em profundidade. E estes são os vazios que este policy paper pretende preencher.
Examina-se, pois, uma análise em profundidade do valor estratégico da CT para a UE, que participa nesta modalidade de cooperação como doador tradicional. Para isso, em primeiro lugar, é realizada uma revisão da literatura sobre o estado da CT, com um foco particular na CT da UE. A partir desta revisão, são identificadas tanto as vantagens como os desafios da CT que podem contribuir a determinar o potencial desta para avançar os objetivos políticos dos doadores ou, em outras palavras, seu potencial estratégico. Em segundo lugar, são reunidas as cifras da CT da UE e seus EM para esboçar seus perfis como doadores triangulares quanto a volume, distribuição geográfica e setorial. A continuação, são expostos os objetivos políticos das cooperações dos distintos países com o propósito de entender quais são as prioridades às quais a CT deveria contribuir para se consolidar como ferramenta estratégica.
Em quarto lugar, são estudadas as opiniões e percepções, sobre da CT, de representantes das cooperações europeias, sobre a base de uma série de entrevistas semiestruturadas com representantes das cooperações ao desenvolvimento dos distintos EM e da Comissão Europeia (CE). A todos eles é solicitado responder um questionário sobre os principais desafios associados à CT (previamente identificados mediante a revisão da literatura), seus maiores obstáculos e suas visões pessoais sobre o possível futuro fortalecimento da CT em suas respectivas cooperações. Desta análise derivam as conclusões e recomendações, na última seção.
Imagem: Sede da SEGIB (Secretaria Geral Ibero-Americana). Foto: Panarria (Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0).