Prefácio
O legado da viagem de circum-navegação liderada por Fernão de Magalhães e con- cluída por Juan Sebastián Elcano perdura até hoje. Esta conclusão poderia encerrar qualquer debate mais alargado sobre as consequências e im- pactos de um feito ocorrido há mais de 500 anos. Com efeito, não poucas vezes somos tentados a observar a história como uma sucessão de breves notas de rodapé longínquas e espaçadas, sem par- ticular impacto duradouro no nosso dia-a-dia. No entanto, nunca será demais repeti-lo: ao celebrar- mos a natureza universal da primeira circum-nave- gação, devemos tentar renovar, sempre que possí- vel, o espírito que nos fez contribuir de forma tão decisiva para o desenvolvimento cultural, científico e comercial de um mundo sempre por descobrir.
É inegável que Portugal e Espanha partilham percursos históricos interligados, por vezes complexos, mas sobretudo paralelos na forma como souberam inserir-se nas várias etapas da globalização. Não conformados com o lugar que a geografia lhes atribuiu, procuraram sempre ir mais além, desbravando caminhos sem nunca deixarem que a capacidade de aprendizagem e superação de ambos alguma vez esmorecesse.
Atendendo ao momento de viragem com que Portugal e Espanha se deparam hoje, enfrentando um conjunto de desafios multifacetados, quer na Europa, quer no resto do mundo, agudizados por um contexto geopolítico marcado pela pandemia da COVID-19, afigura-se assim essencial procu- rar respostas e soluções que possam iluminar os caminhos partilhados do nosso futuro. Não recee- mos, por isso, explorar opções inovadoras para melhorarmos e desenvolvermos as nossas valên- cias e as inúmeras potencialidades conjuntas, pre- parando atempadamente o dia de amanhã.
Esta obra editada destaca-se por ser particular- mente bem-sucedida ao conjugar a experiência do passado, as iniciativas do presente, e os desafios que o futuro nos coloca. Num contexto em que a globalização do séc. XXI se encontra em constante mutação, Portugal e Espanha têm a oportunida- de de provar uma vez mais a sua capacidade de adaptação em domínios tão conexos como a eco- nomia, a ciência, a educação, a defesa, a cultura ou a energia, podendo fazer novamente a diferença na competição global. Tal como Magalhães e Elcano, não temos de temer o desconhecido. Devemos, isso sim, procurar a melhor maneira de ultrapassar os obstáculos, dispostos a partilhar de novo com o mundo tudo aquilo que aprendemos pelo caminho.
Marcelo Rebelo de Sousa
O Presidente da República Portuguesa
Introdução
A primeira circum-navegação (1519-1522) representou um feito inegável para Espanha e Portugal na sua história, tanto individual como partilhada. Os motivos para esta viagem foram fundamentalmente económi- cos e comerciais, mas as condições necessárias para que ela se realizasse deveram-se principalmente à sua liderança militar e, sobretudo, tecnológica, ao nível de cartografia e navegação, então presente em ambos os países. Aparentemente condenados a uma competição inata pela projecção externa num mundo ainda em franca expansão, em virtude das disposições do Tratado de Tordesilhas de 1494, a circum-navegação apenas foi possibilitada pela cooperação forçada entre espanhóis e portugueses: um português começa por liderar a expedição, um espanhol termina a expedição. Para todos os efeitos, revelou-se um feito ibérico.
Os séculos XV e XVI que se seguiram foram assim marcados pelas consequências desta viagem, desde a vitória sobre a vastidão dos oceanos até à implementação de múltiplas conexões geográficas entre todos os continentes, com a geração de novas redes de comunicação densas e complexas. A circum-navegação deve, por isso, ser considerada um momento-chave, tanto para compreender a dimensão real do mundo como para configurar o planeta pela primeira vez como uma unidade geo- gráfica. O mundo nunca mais foi o mesmo e tornou-se irremediavelmente interconectado.
500 anos depois, o contexto é radicalmente diferente, para Espanha e Portugal e no mundo. Por um lado, os dois impérios tornaram-se dois estados-nação e, subsequentemente, dois estados membros de um processo de integração supranacional. Por outro lado, o conjunto de transacções transfronteiriças amplas e multidimensionais que compõe a globalização depende de instrumentos institucionais frágeis colocados à sua disposição. A pandemia da COVID-19 representa apenas o último grande desafio, com ramificações que levantam novas dúvidas generalizadas sobre a sustentabilidade do atual modelo de globalização.
Neste contexto, Portugal e Espanha destacam-se como particularmente expostos à sua envolvente externa. Embora a geografia por si só restrinja as suas ligações terrestres com o centro da Europa, ambos os países têm demonstrado graus consideráveis de abertura ao mundo em geral. Por exemplo, ambos apresentam credenciais substanciais enquanto provedores pró-ativos para a paz e segurança global, e ambos professam uma aposta perene no multilateralismo como forma de reforçar a sua po- sição relativa face à comunidade internacional.
É possível identificar uma dupla lacuna na análise: sobre como melhor detalhar a evolução e as espe- cificidades da globalização em todas as suas facetas, e sobre a forma como Portugal e Espanha se adaptaram a este processo ao longo da sua História. Em reconhecimento destas lacunas, propomos avançar com um exercício coletivo que explore os caminhos autónomos, mas ainda assim paralelos, da inserção de Portugal e Espanha no contexto global.
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Como parte das comemorações do V Centenário da expedição de Fernão de Magalhães e Juan Sebastian Elcano, o Real Instituto Elcano (RIE) e o Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-Iscte) propuseram uma reflexão sobre a relevância deste evento para o processo de globalização, sobre a sua evolução ao longo do tempo e sobre o papel correspondente de Espanha e Portugal. Em Fevereiro de 2020, foi assim lançado um projecto multidisciplinar com o objectivo de publicar uma obra editada sobre esta problemática.
Desde a sua génese, esta colaboração binacional visou oferecer uma perspectiva hispano-portugue- sa, encorajando a troca de pontos de vista, mas também promovendo uma colaboração mais estreita entre investigadores de ambos os lados da fronteira. Isto dito, o livro acabou por ser essencialmente produzido durante a pandemia. Até ao momento da sua edição, os coordenadores da obra não se encontraram presencialmente uma única vez e muitos dos autores não se conhecem pessoalmente. Foi, portanto, um processo difícil – fácil em comparação com o que a humanidade experimentou em 2020 e 2021 –, mas que também nos abriu uma janela para o mundo em tempos de confinamento.
O principal objectivo do livro consiste em analisar a situação e o papel da Espanha e de Portugal no contexto da globalização. A primeira parte, considerada mais histórica, visa descrever os processos de globalização do século XVI ao século XX, começando com a primeira circum-navegação. Neste sentido, o Capítulo 1, de John Elliott, centra-se no contexto em que a viagem de Magalhães e Elcano teve lugar. Embora as sementes da globalização tivessem sido plantadas anteriormente, a viagem contribuiu, para todos os efeitos, para acelerar e consolidar as mudanças em curso, ligando conti- nentes tanto por terra como por mar e acelerando o intercâmbio global de pessoas, bens e ideias.
No capítulo 2, João Paulo Oliveira e Costa e Juan Marchena Fernandéz argumentam, por sua vez, que a circum-navegação desencadeou outra série de efeitos menos visíveis mas não menos relevan- tes para a nossa interpretação das dinâmicas globais subsequentes, incluindo desdobramentos da presença de Espanha e Portugal em outras partes do globo, desde as Américas até África, passando pelo Pacífico. O capítulo 3, de Luís Nuno Rodrigues e Óscar J. Martín Garcia, avança para os séculos XIX e XX e reflecte sobre o posicionamento dos dois países no sistema internacional até ao fim da Guerra Fria e a sua integração nas estruturas políticas e de segurança multilaterais contemporâneas, mostrando como a UE, a Organização do Tratado do Atlântico Norte/North Atlantic Treaty Organization (OTAN/NATO) e as relações com África e América Latina prevaleceram na redefinição das suas políti- cas externas.
Ao longo destes séculos, a globalização mudou substancialmente, tanto em termos dos seus prota- gonistas (com a ascensão dos Estados Unidos e, mais recentemente, da China e de outras potências emergentes) como em termos da sua natureza e intensidade. É um fenómeno vivo e em mudança, e a globalização de hoje difere da de há 500 anos atrás. Embora não haja consenso sobre como defini-lo a nível teórico, o conceito alargou-se desde a ligação principalmente económica e entre Estados-nação até à introdução de outras dimensões, tais como a cultural (em sentido lato) ou militar, a emergência de organizações supranacionais e novos actores, a interconectividade social através do desenvolvimento tecnológico das formas de comunicação e transporte e, em última análise, o aprofundamento dos problemas e da consciência global das sociedades actuais.
A segunda parte do livro centra-se em explorar a inserção de Portugal e Espanha na globalização com um estudo detalhado da projecção de ambos os países nas esferas económica, militar e suave. Para tal, utilizamos o Índice Elcano de Presença Global, uma ferramenta desenvolvida pelo Real Instituto Elcano que visa quantificar a projecção internacional dos países a fim de observar as principais ten- dências nos seus processos de internacionalização. O capítulo 4, escrito por Iliana Olivié, Manuel Gracia e Ines M Ribeiro, começa assim por apresentar uma panorâmica dos principais objectivos de política externa de ambos os países, seguida de uma análise da presença global de Espanha e Portugal em termos de volume e natureza, dos seus perfis económicos, militares e suaves, bem como das suas respectivas distribuições geográficas.
Os restantes capítulos visam destacar um conjunto de facetas em comum, nomeadamente: o papel de ambos os países em domínios específicos da globalização; a orientação e perfil geográfico desta mesma projecção; os aspectos institucionais que explicam a natureza da inserção externa de ambos os países; e possíveis perspectivas futuras em comum. No capítulo 5, Federico Steinberg e José Juan Ruiz analisam as principais características da inserção de Portugal e Espanha na economia mundial e destacam os desafios que impedem uma maior convergência com o resto da UE. Ao mesmo tempo, ambos os autores reflectem sobre como o processo de integração europeia pode reagir à actual crise económica gerada pela pandemia COVID-19 e como isto poderá ajudar a transformar as economias espanhola e portuguesa, tornando-as menos vulneráveis a futuros choques sistémicos.
No capítulo 6, Félix Arteaga e Pedro Seabra debruçam-se sobre a dimensão militar, concentrando- se em mostrar como as políticas de defesa e a organização militar dos dois países são afetadas por diferentes culturas estratégicas, muito embora permaneçam fortemente interligadas com importantes compromissos internacionais. A socialização de estruturas-chave através das instituições da NATO, da UE e da Organização das Nações Unidas (ONU) ajuda a explicar as principais opções nesta área, sendo, no entanto, possível melhorar as capacidades materiais necessárias para sustentar o nível de projeção externa e encontrar oportunidades de maior cooperação para a prossecução de objetivos mútuos.
Por último, no capítulo 7, Ángel Badillo e Clara Carvalho focam-se na projecção suave de Portugal e Espanha, demonstrando como os fortes laços culturais que ambos os países mantêm com as suas antigas colónias, em paralelo com a sua instrumentalização através de iniciativas multilaterais e a sua capitalização através de duas línguas globalmente implantadas, ancoraram uma presença oscilante, mas ainda assim significativa no mundo. No entanto, destacam também as possibilidades de reforçar a cooperação bilateral nestas áreas, o que, por sua vez, melhoraria a projecção externa de Espanha e Portugal.
Um exercício desta magnitude não seria possível sem um amplo apoio institucional e profissional. Em primeiro lugar, devemos um agradecimento especial às duas instituições que alimentaram e apoia- ram este projecto desde a sua concepção inicial, o Real Instituto Elcano e o Centro de Estudos Internacionais. A intersecção natural que foi gerada entre as linhas de investigação realizadas em cada país proporcionou o enquadramento necessário para convocar e desenvolver um projecto que englobasse análises no âmbito da História, Relações Internacionais ou Economia.. Em segundo lugar, com o objetivo de ultrapassar as dificuldades inerentes ao contexto pandémico, foram organizadas três reuniões remotas entre todos os autores, a 20 de julho de 2020, 11 de dezembro de 2020 e 26 de fevereiro de 2021, culminando num workshop mais alargado a 1 e 2 de julho de 2021, com a pre- sença adicional de vários especialistas que forneceram recomendações sobre como melhor assegurar a coesão e qualidade do livro. Neste contexto, estamos em dívida para com Andrés Malamud, Carlos Malamud, Áurea Moltó, Pedro Aires Oliveira, Alexandra Pelucia, Nuno Lemos Pires, Charles Powell, Bruno Cardoso Reis e José Reis por disponibilizarem o seu tempo e conhecimentos especializados com comentários valiosos a versões iniciais de todos os capítulos. Em terceiro lugar, gostaríamos de agradecer à Comisión Nacional para la conmemoración del V Centenario de la expedición de la primera vuelta al mundo de Fernando de Magallanes y Juan Sebastián Elcano, ao Centro de Estudos Políticos e Constitucionais e, muito particularmente, ao Boletín Oficial del Estado de Espanha, pelo apoio na publicação, a María Solanas pelo trabalho de ligação e coordenação, a María Solís pelo trabalho de design e a María Dolores de Azategui, Sofía Santos e Ines M Ribeiro pelo apoio editorial essencial, que nos permitiu levar a bom porto uma obra bilingue tão exigente quanto ambiciosa. Por último, du- rante a elaboração desta obra, fomos confrontados com o falecimento súbito de John Elliott, colega, autor, e uma referência incontornável na área. A qualidade final deste livro beneficia diretamente dos seus valiosos conhecimentos e experiência e esperamos poder fazer justiça a todo o vasto corpo de investigação que nos deixa. Estamos certos que ele seria o primeiro a concordar, que se tivermos conseguido abrir caminho para outros trabalhos futuros que versem sobre temas correlacionados, e expandir ainda mais o nosso conhecimento sobre as peculiaridades da projeção externa de Espanha e Portugal, teremos sido bem sucedidos no nosso propósito original.
Iliana Olivié, Luís Nuno Rodrigues, Manuel Gracia e Pedro Seabra