Resumo
Francisco Franco, o Generalíssimo e Caudilho que governara o regime ditatorial espanhol desde 1939, morreu em Madrid, a 20 de novembro de 1975, abrindo o caminho de Transición para a democracia, dentro de um processo político ibérico mais vasto, e já em curso, iniciado pelo golpe de Estado português de 25 de abril de 1974 e pela subsequente revolução lusa de 1974-1975.
Este texto tem por objetivo central analisar como a morte de Franco e, de forma mais alargada, o seu contorno político em Espanha foram recebidos em Portugal, explorando os relatórios e informes diplomáticos enviados para Lisboa pela embaixada portuguesa em Madrid, nos últimos meses de 1975. O estudo da narrativa do embaixador português revela dois grandes aspetos: primeiro, e desde logo, que o desaparecimento físico do Caudilho era, no final de 1975, uma inevitabilidade à espera de acontecer, dada a sua gravíssima condição de saúde, um facto que de alguma maneira transformou o óbito de Franco numa ocorrência pouco significativa em si mesma; segundo, e mais importante, que a morte do ditador espanhol foi apenas uma peça, ou um momento, de um processo político mais vasto – e esse sim, realmente decisivo para o futuro do país vizinho – que ligou a decadência política do franquismo, ainda em vida do Caudilho, à rápida erosão ideológica dos franquistas, após a sua morte, como ficou claro pelos primeiros passos da nova monarquia de D. Juan Carlos I.
Na sua conclusão, o texto sustenta que, no quadro das interdependências entre os dois países ibéricos, o desaparecimento de Franco parece ter tido pouca ou nenhuma influência direta na liquidação do radicalismo político português, obtida através da operação militar pró-moderada de 25 de novembro de 1975, em Lisboa, que permitiu encerrar o processo revolucionário em Portugal. Assim, mais do que a ocorrência quase simultânea dos dois factos, são as consequências convergentes de ambos para a democratização da Península o que a história e a política ibéricas mais devem recordar.
Summary
General Francisco Franco, the long-standing Caudillo who had governed the Spanish dictatorial regime since 1939, died in Madrid on 20 November 1975, paving the way for the Transición towards democracy, within a broader and unfolding Iberian political process which had been ignited earlier by the Portuguese anti-dictatorial coup d’état and ensuing revolutionary period (1974-1975).
The aim of this text is to analyze how Franco’s death and, broadly, its political contour in Spain, were received in neighbouring Portugal, by scrutinizing the content of diplomatic reports sent to Lisbon by the Portuguese embassy in Madrid in the last months of 1975. The analysis of the Portuguese ambassador’s narrative allows for a twofold argument. Firstly, that Franco’s death was, by late 1975, an inevitability waiting to happen, given his severe health condition, which somehow transformed that fact into an uneventful occurrence. Secondly, that Franco’s physical disappearance was but part and play of a larger process, connecting the political decay of Francoism and the ideological waning of the last francoists, as shown by the first steps of Juan Carlos I coming (democratic) monarchy.
In the conclusion, the text purports that, within the broader interdependences between the two Iberian countries, the death of Franco seems to have had little direct influence on the taming of Portuguese political radicalism, attained through the pro-moderate military operation of 25 November 1975 in Lisbon, despite the convergence that both events had in fostering the democratic path followed both by Madrid and Lisbon after the end of that year. Therefore, rather than the almost simultaneous occurrence of the two facts, it was the convergence consequences of them both for the democratization of the Peninsula that which Iberian history and politics should remember.
Introdução.
Francisco Franco y Bahamonde, Generalíssimo e Caudilho de Espanha, e António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros de Portugal, foram os dois mais longevos ditadores da história da Europa ocidental durante o século XX. Salazar chegou ao poder em 1932, antes de Franco, que apenas em 1939 conseguiu vencer a crudelíssima guerra civil que dividiu a Espanha durante quase três anos. Sobreviventes aos ventos democratizadores do pós-II Guerra Mundial, muito por causa do anticomunismo que partilhavam com as grandes potências ocidentais da Guerra Fria, envelheceram ambos no poder, emprestando às duas ditaduras um carácter politicamente anacrónico, num mundo em mudança, e numa Península Ibérica que também evoluiu e se transformou, nos planos social, económico, cultural e mental, ao longo das décadas de 1950 e de 19601.
Substituído na presidência do Conselho por Marcelo Caetano, em setembro de 1968, Salazar morreu em julho de 1970, com 81 anos. Franco, por seu turno, sobreviveu a Salazar e pôde, assim, observar o espetáculo pouco digno da reclusão final do estadista português na sua residência oficial, o Palácio de São Bento, já inválido, à espera da morte, por entre patéticas aparições públicas ou fotografias que apenas serviam para vincar a sua decadência física e mental. Porventura não desejando ter um fim semelhante, o ditador espanhol colheu lições do caso português, preparando, logo depois da ascensão de Marcelo Caetano ao poder em Lisboa, uma solução sucessória para o dia seguinte ao franquismo – um passo que Salazar recusou fazer porque, para lá da pretensão de “assegurar a perenidade do regime político por ele concebido e mantido durante 40 anos”, sempre receou que uma eventual restauração da monarquia em Portugal, após o seu desaparecimento, na pessoa de D. Duarte Nuno de Bragança, conduzisse, a breve trecho, à democratização do país (o que viria a acontecer em Espanha)2. Foi, assim, por expressa determinação do Caudilho que se assentou na futura restauração da monarquia espanhola, e que, nos termos da ley Orgánica del Estado, o Príncipe D. Juan Carlos de Borbón foi nomeado, em 1969, futuro sucessor de Franco, numa transição de poderes que este esperava ser de continuidade da sua obra3.
Apesar da ralentización da amizade ibérica, que vinha cavando um vivir de espaldas entre Madrid e Lisboa desde meados dos 19504, o desaparecimento político e físico de Salazar fez algumas – embora não muitas – manchetes em Espanha5, dado tratar-se do ditador vizinho de um regime que seguia sendo, também, uma ditadura, apesar do aperturismo tecnocrata das novas gerações, que emulava a “renovação na continuidade” lançada por Marcelo Caetano6. Em junho de 1973, enfraquecido e com evidentes sinais de progressão da doença de Parkinson, Franco aceitou finalmente entregar a chefia do governo, que ocupara durante 35 anos, ao almirante Luis Carrero Blanco, um fiel tradicionalista, retendo para si apenas a chefia do Estado7. Carrero Blanco seria, porém, assassinado pela ETA seis meses volvidos, para profundo desgosto e desânimo do Generalíssimo, para quem o desaparecimento do seu braço-direito e a própria brutalidade do atentado que o vitimou significaram o começo da “morte do franquismo em vida de Franco”8.
Em janeiro de 1974, o Caudilho empossou Carlos Arias Navarro como presidente de um executivo que nunca deixaria de ser – enquanto durou, até 1976 – um híbrido de imobilistas e de reformistas, oscilando entre a pressão dos ultras (o bunker ou a “camarilla de El Pardo”, como eram conhecidos na gíria política espanhola), e as oposições moderadas que encetaram a sua rota a caminho do poder9. Quando o golpe militar de 25 de abril de 1974 se deu em Lisboa, derrubando Marcelo Caetano e pondo fim a quase meio século de regime ditatorial, o governo de Arias Navarro já vivia acossado, num vaivém de abertura e retrocesso, entre os que o consideravam demasiado liberal e os que o consideravam demasiado conservador. E, na cúpula do Estado espanhol, com 81 anos, o velho Franco viveu os seus últimos meses de vida temendo acabar como Salazar, inutilizado e proscrito, e contemplando com surpresa, receio ou verdadeiro terror o processo revolucionário desenrolado em Portugal em 1974-1975.
A morte de Franco, ocorrida a 20 de novembro de 1975, coincidiu com os derradeiros estertores do PREC português (o “Período Revolucionário em Curso”), vencidos pelo contragolpe moderado de 25 de novembro, em Lisboa – o momento que abriu a porta à vitória do centro político sobre a extrema-esquerda e à normalização de uma democracia pluralista e pró-ocidental em Portugal, depois dos meses da radicalização esquerdista e do verão e outono quentes desse ano. Ao contrário da conjuntura de Madrid, em julho de 1970, aquando do óbito de Salazar, o momento político de novembro de 1975 em Lisboa dominava todas as atenções públicas, deixando pouco espaço para os ecos da morte do Caudilho espanhol. Dezanove meses volvidos sobre o golpe libertador de abril de 1974, ninguém, em Portugal, estimava a ditadura espanhola e ainda menos o seu (ainda) líder. Franco era uma abencerragem, um anacronismo, o último dos “fascistas”.
A atualidade portuguesa, pela sua novidade revolucionária ou democrática, era muito mais seguida em Espanha do que o inverso, provando o quanto o pioneirismo político luso teve uma influência determinante na preparação e primeiros tempos da transición política que se viria a operar no país vizinho. Em todo o caso, mesmo que pouco presente nas páginas da imprensa diária ou semanal portuguesa, o estertor da ditadura franquista não deixou de ter as suas testemunhas e analistas lusos, que deixaram para a posteridade uma leitura pessoal e coeva da atualidade política dessa Madrid aparentemente distante, permeada de apontamentos sobre a própria relação peninsular, numa conjuntura – a de 1975 – que foi de acesa dessintonia ibérica e, só no final do ano, de convergência e aproximação.
O objetivo deste texto é o de explorar a forma como os relatórios e as informações enviados pelo embaixador de Portugal em Espanha – João Eduardo de Meneses Rosa – noticiaram e comentaram a morte de Franco e, de maneira mais alargada, o seu contorno político, antes e depois desse desfecho. A análise dessas fontes e narrativa diplomáticas revela dois grandes aspetos: primeiro, e desde logo, que o desaparecimento físico do Caudilho era, no final de 1975, uma inevitabilidade à espera de acontecer, dada a sua gravíssima condição de saúde, um facto que de alguma maneira transformou o óbito de Franco numa ocorrência pouco significativa em si mesma; segundo, e mais importante, que a morte do ditador espanhol foi apenas uma peça, ou um momento, de um processo político mais vasto – e esse sim, realmente decisivo para o futuro do país vizinho – que ligou a decadência política do franquismo, ainda em vida do Caudilho, à rápida erosão ideológica dos franquistas, após a sua morte, como ficou claro pelos primeiros passos da nova monarquia de D. Juan Carlos I. Sem negar as interinfluências então vividas entre a revolução portuguesa e a transición espanhola, já em curso em 1975, a investigação mostra que era o futuro pós-franquista, e não tanto a morte de Franco, o que mais preocupava os espanhóis e o que mais ocupou os informes da embaixada expedidos de Madrid para Lisboa; e que – pelo menos nos corredores diplomáticos – foi mais o resultado político do “25 de novembro” português a ter ecos em Espanha do que o óbito do ditador espanhol a impactar no quotidiano da luta ideológica portuguesa, e no desfecho do PREC, então alcançado.
José Miguel Sardica
Historian and Associate Professor, School of Human Sciences / Institute for Political Studies, Catholic University of Portugal
1 Para a relação entre Portugal e Espanha desde os primórdios das duas ditaduras ibéricas até à consolidação das duas democracias, v. Ferreira, 1989, Oliveira, 1995, Vicente, 2003 ou Sardica, 2013, bem como os artigos ou capítulos síntese de Torre Gómez, 1998, Gaspar, 2000, ou Queirós, 2009.
2 Amaral, 1995, pp. 83-84.
3 Preston, 2004, pp. 798-802.
4 V. Sardica, 2013, pp. 195 e ss, e, mais extensamente, Jiménez Redondo, 1996.
5 Os principais jornais madrilenos não dedicaram ao óbito do histórico ditador português mais do que algumas discretas referências. O Caudilho não compareceu na missa mandada rezar em Madrid por alma de Salazar – embora a ausência possa ter sido ditada por razões de saúde (Antunes, 2003, pp. 191 e 308).
6 Sardica, 2013, pp. 222-225.
7 González Cuevas, 2000, p. 418, e Preston, 2004, pp. 818-820.
8 Sánchez Cervelló, 1993, p. 334.
9 Preston, 2004, pp. 825-826. De acordo com o conhecido biógrafo do ditador espanhol, a escolha de Carlos Arias Navarro, alcalde de Madrid, ministro do Interior e um dos favoritos de D. Carmén Franco, para suceder a Luís Carrero Blanco foi “a última decisão política importante de Franco”; a partir desse momento, encetou-se “a transição para a democracia e ele seria um espectador das lutas políticas que se seguiram” (p. 825).