Versão original em espanhol: Sonata de un año de gobernabilidad en Portugal: en busca de un adagio
Tema
Como decorreu a crise política portuguesa e qual foi o balanço de um ano de governabilidade? Que perspetivas de futuro existem num sistema de governação tão original?
Resumo
Depois da crise política portuguesa, a solução de governo minoritário do socialista António Costa com o apoio parlamentar dos partidos à sua esquerda sobrevive com negociações e equilíbrios permanentes com os seus parceiros no parlamento, com Bruxelas e com o Presidente da República. A navegar contra o vento, ao ritmo de andante moderato, a aprovação do segundo orçamento geral para 2017 (com menos resistência de Bruxelas) e o registo de crescimento real da economia, com um aumento do PIB no terceiro trimestre, fecham este ciclo político inovador contra todos os vaticínios, pelo menos, até às eleições autárquicas do outono de 2017.
Isto mesmo sublinhou o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa (conservador de centro-direita) que, ao invés da fragmentação das legislativas, reúne um impressionante consenso e popularidade nacional. Popular, sem ser populista, o ativismo molto vivace do Presidente mereceu algumas críticas de “presidencializar” o sistema semipresidencial.
Se o seu ativismo e a popularidade se mantiverem, pode atenuar-se a acentuação da dimensão do parlamento, tradicional em ciclos de governos minoritários. O desafio de assegurar a legislatura e a estabilidade governativa vão depender também da forma como o Presidente aborda o seu papel de garante da estabilidade política em ciclos de coabitação.
Entre a acentuação do andante do Governo de António Costa ou do vivace do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a melodia da segunda parte da legislatura está ainda por definir. Em ciclos de grande polarização, de governos frágeis e de tempos em que se verificam profundas transformações nos paradigmas, não seria mau, no final de contas, que o terceto Parlamento/Governo/Presidente conseguisse interpretar um longo e insólito adagio num ritmo que favoreça a bastante necessária estabilidade política no médio-longo prazo.
Análise
Em 26 de novembro de 2016 cumpriu-se um ano desde que o socialista António Costa tomou posse como Primeiro-ministro no XXI Governo de Portugal. A solução governativa põe fim à crise política aberta pelos resultados eleitorais de outubro do ano passado e abre uma nova sonata na vida política portuguesa com ritmos bastante inovadores.
Prelúdio: crise política em vivaccisimo
O prelúdio, vivaccisimo, foi marcado pela crise económica (financeira global e da dívida da Eurozona) e pela aplicação das medidas do resgate financeiro da denominada Troica (Comissão, BCE e FMI) desde 2011. As suas marcas sociopolíticas tiveram impacto nos resultados eleitorais, traduzindo-se numa sociedade profundamente dividida e num aumento da polarização dos partidos no Parlamento com reforço dos partidos antiausteridade (sobretudo o Bloco de Esquerda, próximo do Podemos e do Syriza). Isto representou a consequente dificuldade de alcançar coligações de governo estáveis. Contra a tradição de permitir que governe o partido vencedor das eleições, a coligação de centro-direita (Partido Social-Democrata e Centro Democrático Social – Partido Popular, PSD-CDS) caiu no Parlamento após 11 dias com a aprovação de uma moção de censura dos partidos de esquerda. Uma coincidência circunstancial e temporária impediu constitucionalmente o Presidente de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Os socialistas, o segundo partido mais votado, formaram um governo minoritário com acordos de apoio parlamentar de mínimo denominador comum, negociados separadamente, com os partidos à sua esquerda. Foram excluídas as questões polémicas como a pertença à NATO e a posição na UE. Tampouco foi garantido o apoio para aprovar os Orçamentos Gerais de Estado ou evitar futuras moções de censura. Portanto, tornou-se necessário um intercâmbio de informação e de negociação permanente política-a-política entre o Governo e cada um dos seus parceiros.
O Governo do socialista António Costa, andante moderato
A sobrevivência do Governo, bem como o futuro do Partido Socialista, depende assim de uma permanente concertação e legitimação por resultados a nível interno e na UE. Resultados económicos de crescimento e investimento; resultados no controlo do défice; estabilização do sistema bancário; e, simultaneamente, a recuperação dos rendimentos das famílias (salários de funcionários públicos e pensões) pelo compromisso com os seus parceiros no Parlamento.
O Governo tem de construir consensos permanentes e superar os desafios da triangulação: parceiros no Parlamento, vigilância presidencial e da UE. Estas dialéticas não permitem avançar mais que a um ritmo de andante moderato. Vejam-se algumas delas. No início do mandato, em dezembro de 2015, com a oposição dos seus parceiros no Parlamento, aprovou o orçamento retificativo de 2015 para suportar o buraco financeiro da banca (BANIF) por um valor de 2,25 milhões de euros. Foi uma herança do anterior executivo, que garantiu a sua aprovação com a abstenção. Mais recentemente, o plano de recapitalização do banco público, Caixa Geral de Depósitos, passou o rigoroso escrutínio de Bruxelas sobre as ajudas de Estado, mereceu as dúvidas iniciais do Presidente da República e continua a agitar os parceiros no Parlamento e a agenda política. As negociações com Bruxelas para a arovação dos Orçamentos Gerais do Estado, sobretudo o de 2016, com a exigência de medidas adicionais de 2000 milhões de euros e o Programa de Estabilidade 2015-2019 completam o quadro. Por outro lado, o perdão de Bruxelas pelo défice excessivo foi muito bem aproveitado pelo executivo a seu favor, embora tenha valido um confronto direto com o Ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, recordando que as desconfianças não tinham desaparecido completamente. No entanto, este tema eclipsou-se com a candidatura e a eleição de António Guterres como Secretário-Geral da ONU, que originou uma frente e a mobilização nacional de todos os quadrantes políticos e instituições.
E assim, navegando contra o vento, o Governo de António Costa conseguiu sobreviver ao seu primeiro ano com a aprovação do segundo Orçamento Geral do Estado no passado 4 de novembro. O registo de crescimento real da economia em 0,8 % e o aumento do Produto Interno Bruto de 1,6 % (terceiro trimestre) fecha o primeiro ano de graça da atual solução governativa, conhecida por geringonça, uma alcunha do Vice Primeiro-Ministro da anterior coligação de governo, o conservador-popular Paulo Portas.
A incerteza sobre o sucesso de uma solução governativa que nunca antes tinha sido experimentada no original sistema político português, suscitou fundadas dúvidas sobre a sua operacionalidade e, sobretudo, estabilidade. Contra todos os prognósticos, no entanto, o atual ciclo político tem boas perspetivas de manter-se a curto-médio prazo e até de completar a legislatura em 2019. É este o objetivo do Governo aparentemente também partilhado pelos seus parceiros no Parlamento, o que afasta a possibilidade da sua queda pela aprovação de uma moção de censura.
O desafio consiste, pois, em saber se superadas as primeiras desconfianças e apaziguados os ânimos, nos três anos que restam de legislatura, esta solução de governo de equilíbrios instáveis passa do andante ao allegro e consegue implementar políticas de alcance estrutural de médio-longo prazo em áreas como a educação, a governação económica e a reforma administrativa do Estado.
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, allegro molto vivace
Ao contrário da polarização das eleições legislativas, Marcelo Rebelo de Sousa, “o professor Marcelo”, como gosta de ser conhecido, obteve um amplíssimo consenso nacional e ganhou as eleições presidenciais em todos os círculos eleitorais à primeira volta com 52 % dos votos. A sua atuação como presidente regista uma imbatível popularidade da ordem dos 70 %.
Nestes oito meses de presidência, os portugueses vão-se habituando ao seu estilo muito pessoal e às aparições públicas quase diárias. Nos primeiros 100 dias de governo, apenas esteve 19 dias em silêncio. As constantes comunicações vão desde a situação na UE, a crise da banca portuguesa e a morte de Leonard Cohen e, por vezes, não se distinguem muito do estilo didático do professor e do comentador político. A sua extensa agenda abarca desde a memorável condecoração à porteira portuguesa de Paris, que contou com a presença do presidente Hollande, até às visitas a municípios e cidades portuguesas no âmbito daquilo que designou como “Portugal próximo” (com vista a uma necessária reforma administrativa do Estado em torno da descentralização), e passa por registos mediáticos como convidar Mario Draghi para participar no primeiro Conselho de Estado e ter sido recebido por Fidel Castro na sua passagem por Cuba.
A sua agenda internacional marca bem as prioridades da política externa portuguesa. A primeira visita oficial foi dedicada aos Reis de Espanha, que a devolveram em finais de novembro. Reuniu-se com o presidente Hollande, que também devolveu a visita; viajou para a Alemanha para sensibilizar a chanceler Angela Merkel sobre a “injustiça” das multas. Esteve no Parlamento Europeu, visitou vários países africanos do mundo lusófono e da América Latina. O diário El País afirmou que, em seis meses, o Presidente “Marcelo” tinha falado com mais dirigentes internacionais que Rajoy e Rodríguez Zapatero juntos nos seus anos de governo.
Em todas as visitas, a diplomacia económica esteve na agenda e foi prestada uma especial atenção às comunidades portuguesas nos países visitados. O Presidente está determinado a dignificar a imagem e a restaurar a confiança no país, ao mesmo tempo que pacifica uma sociedade profundamente dividida. Com um tempo allegro molto vivace, o desafio do Presidente é reforçar a autoestima (normalmente baixa) de Portugal e dos portugueses em torno da (re)construção de uma ideia de “Portugalidade” que sirva de base para um grande consenso nacional, como um presidente-rei, na expressão tomada do filósofo Agostinho da Silva (1906-1994).
Popular, sem ser populista, mas podendo sê-lo, o Presidente, nos antípodas do seu antecessor, é um comunicador nato, próximo, afetuoso, informal e hiperativo, de caráter e em cumprimento de promessa eleitoral. Os seus índices de popularidade e o consenso à sua volta dão-lhe uma ampla margem de manobra no exercício dos seus vastos poderes presidenciais de árbitro e moderador. O perfil democrático inatacável, o profundo respeito pelas instituições e o sentido de dever patriótico afastam-no claramente das atuações “populistas” que têm vindo a fortalecer-se na Europa e que assumem agora a sua expressão máxima nos EUA com a eleição de Donald Trump como Presidente.
Apesar de tudo, alguns analistas começam a afirmar que, favorecido pela debilidade do atual Governo, Marcelo Rebelo de Sousa está a mudar a natureza das funções do Presidente da República virando-as para o “presidencialismo”. Os seus vetos políticos a dois atos legislativos: “barrigas de aluguer” e uma lei que impedia a participação privada nas empresas de transporte público são de cariz marcadamente ideológico e não podem deixar de ser entendidos como a expressão do seu presidencialismo ativo e afirmação de uma orientação política de moderação ao centro.
A coabitação até às eleições autárquicas em 2017, allegro moderato
A coabitação com o Governo traduz-se num diálogo franco, amigável e de respeito institucional bastante positivo, em favor da estabilidade política do país. Assume ritmo de um allegro moderato, visto que o Presidente, no seu papel de agente “pacificador da sociedade portuguesa”, também não passa um cheque em branco ao Governo, questionando abertamente, por exemplo, o “otimismo” sobre as suas opções económicas e de crescimento. Segundo afirmação do próprio Presidente, a prova do período de graça serão as eleições autárquicas do outono de 2017, não pela previsão de grandes mudanças no panorama eleitoral, mas porque poderiam ser adicionados novos elementos a ter em conta nos equilíbrios do poder.
Estas eleições ocorrerão quase em simultâneo com a preparação do Orçamento Geral do Estado para 2018. Seguramente o debate será contaminado pelo ambiente eleitoral e pela consequente acentuação das diferenças entre os partidos. Os resultados eleitorais também medirão os benefícios ou os custos dos partidos participantes na atual solução governativa. Finalmente, uma provável mudança de liderança no principal partido da oposição, o PSD, no congresso previsto para depois das eleições (abril de 2018), abrirá novas perspetivas para as legislativas de 2019.
Perspetivas de futuro: o sistema semipresidencial em busca de um adagio
Todos os cenários estão, assim, em aberto. Um cenário de polarização que reforce o atual ciclo favorecerá a parlamentarização do sistema político, com governos minoritários de socialistas ou social-democratas e os seus respetivos apoios, à esquerda e à direita. Uma grande coligação ao centro entre os socialistas e os social-democratas tampouco é desconhecida do sistema português. O denominado “Bloco Central” dos anos 80 seria uma solução que, a ser possível por uma mudança na liderança do PSD, poderia ser apoiada pelo Presidente com vista à defesa de um grande consenso nacional. De momento, a recuperação de maiorias estáveis com a formação de governos fortes está mais longínqua no horizonte, embora não seja impossível com uma progressiva estabilização social pós-crise. Apesar da volatilidade das sondagens de intenção de voto, em novembro, pela primeira vez, no espaço de um ano, os socialistas conseguiram as mesmas intenções de voto que a coligação dos partidos de centro-direita (PSD-CDS) com 37 %, em franca acentuação da bipolarização política.
Por enquanto, o Governo socialista defende que “em equipa ganhadora não se mexe”, mas também não fecha as portas e mantém-se aberto a novas alianças. Uma mudança de líder no PSD não só poderá reforçar a presente bipolarização entre a direita e a esquerda, como alterar a composição do Parlamento a favor de um deles.
Se o atual ciclo político de governos frágeis e de favorecimento da dimensão parlamentar se repetir para além de uma legislatura, desenvolver-se-ão de forma inédita as prerrogativas constitucionais de salvaguarda da formação e sobrevivência de governos minoritários. A única vez na história da democracia portuguesa em que um governo minoritário cumpriu o seu mandato foi em 1995, com o primeiro governo do socialista António Guterres. Naquela altura, o cenário estava bastante menos fragmentado: os socialistas tinham obtido 112 dos 116 assentos necessários para a maioria, contra os 86 agora conseguidos por Costa. Por outro lado, uma década de governos maioritários do PSD com Cavaco Silva tinha esvaziado a capacidade de liderança do partido, que recuperou apenas em 2002 com Durão Barroso. Nos seis anos seguintes ao primeiro Governo de Guterres, o país viveu anos de instabilidade (três governos em seis anos) até que, em 2005, o socialista José Sócrates confirmou a tendência iniciada com Cavaco Silva de governos maioritários e primeiros-ministros fortes: a “governamentalização do Parlamento”.
Esta viragem para o “parlamentarismo” pode ainda ser atenuada pela atuação do Presidente da República na triangulação típica dos sistemas semipresidenciais entre Presidente, Parlamento e Governo. No sistema de governo português, a atuação do Presidente varia em função de conjunturas de coabitação ou confluência com a maioria parlamentar; o seu perfil mais ou menos intervencionista e, sobretudo, a existência ou não de uma maioria absoluta e homogénea de apoio ao Governo.
Se o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa mantiver os seus índices de popularidade e o seu perfil “presidencial” muito ativo, pode atenuar a tradição da predominância parlamentar em ciclos de governos minoritários (Cavaco Silva em 1985, Guterres em 1995 e Sócrates em 2009). Tudo depende de como o Presidente desempenhe o seu papel de moderador e promotor da unidade e estabilidade política no presente ciclo de coabitação com a esquerda: se vai assumir o papel de regulador “crítico” (como Sampaio e Cavaco) ou inclusivamente de contrapoder (como Soares).
Conclusões
Depois da crise política portuguesa, a solução de governo minoritário do socialista António Costa abre um novo e inovador ciclo político em Portugal e sobrevive ao seu primeiro ano de governo com negociações e equilíbrios permanentes com os seus parceiros no Parlamento, com Bruxelas e com o Presidente da República. Contra todas as expectativas, tem boas perspetivas de manter-se, pelo menos, até às eleições autárquicas do outono de 2017. Estas eleições marcarão o andamento dos últimos dois anos da legislatura e do ciclo político. Ao estilo das sonatas, poderá acentuar-se o andante do Governo de Costa ou o vivace do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O tempo dirá, mas em momentos de profundas mudanças nos paradigmas, não seria mau se a legislatura terminasse e o terceto Parlamento, Governo e Presidente conseguisse, por fim, interpretar um longo e insólito adagio, em tons de maturidade democrática em favor de uma estabilidade política e de políticas para o médio e longo prazo.
Patrícia Lisa
Investigadora, Real Instituto Elcano | @Llisa_Patricia